CULTURA VIVA na América Latina

 

Por Célio Turino

“Uma notícia está chegando lá do exterior

Não deu no rádio no jornal ou na televisão”

 

Em minhas centenas de viagens aos Pontos de Cultura pelo interior do Brasil sempre cantarolava a música “Notícias do Brasil” de Milton Nascimento com letra de Fernando Brant. Queria compartilhar este país que eu tinha oportunidade de ver com meus próprios olhos, um Brasil energizado e compartilhado pelos Pontos de Cultura, com gente criativa e valente, fazendo coisas diferentes na defesa do Bem Comum. De certa forma pude contar essas histórias no meu livro “PONTO de CULTURA, o Brasil de baixo para cima”, tanto que abro o livro fazendo um diálogo com esta música e a história dos Meninos e Meninas de Araçuaí (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais) e o presente que deram à sua cidade: um cinema.

Agora, estando há mais de dois anos fora do ministério da cultura, me relembro da música e apenas faço uma mudança na letra, trocando “interior” por “exterior”. A vida tem me levado para fora do Brasil e desde março de 2011 tenho recebido incontáveis convites para conferências e cursos em outros países, sobretudo América Latina, mas também Europa. No período em que estava trabalhando no ministério da cultura evitei as viagens oficiais ao exterior, pois tinha consciência de que, naquele momento, minhas responsabilidades estavam em dar conta de meu trabalho para o povo brasileiro, atendendo às milhares de entidades culturais comunitárias do Brasil, e assim fiz. Agora, sem responsabilidades de governo, posso sair difundindo, não mais um programa governamental, mas teoria, conceitos e experiências que podem e devem ser compartilhadas. Com isso já estamos realizando uma campanha continental pela Cultura Viva Comunitária, que busca assegurar em lei um orçamento mínimo de 0,1% do orçamento público para o “fazer cultural” autônomo e protagonista, potencializando os Pontos de Cultura existentes em cada país. Esta é uma experiência de lei continental, que se estende da Terra Fogo ao Rio Grande (o rio seco que separa o México do estado norte-americano do Texas), unindo 21 países.

Uma primeira percepção com estas viagens: é tudo tão comum!

Eu nos vejo quando estou na Guatemala, junto com a Caja Lúdica fundada por um casal de colombianos de Medellin. Neles encontro os tantos casais que diariamente levam adiante seus Pontos de Cultura no Brasil (entre os muitos Pontos de Cultura que conheci, aqui e no exterior, sempre encontro a presença dedicada e cúmplice de casais). Em verdade, a Caja Lúdica de Guatemala, atua como um Pontão de Cultura, articulando, capacitando e difundindo Pontos de Cultura por todo o país e mesmo entre seus vizinhos da América Central. São 50 pessoas em trabalho diário, vivendo da caixa lúdica, sendo remunerados por ela (não muito, pois sabemos o quanto é dura a vida de quem opta para trabalhar em uma perspectiva do bem comum, mas suficiente para uma vida digna e feliz). Des-silenciam um povo silenciado pelos genocídios recentes (na guerra civil que assolou o país até o final do século XX, há mais de 50.000 desaparecidos e 200.000 mortos em genocídio, isto em um país com pouco mais de 14 milhões de habitantes) e passados (a Guatemala está no centro da civilização Maya), recuperando a medicina tradicional dos povos Maya, seus ritos e histórias; mobilizando jovens e difundindo a cultura paz no país com o segundo maior índice de homicídios do mundo (70 assassinatos para cada 100.000 habitantes – no Brasil a taxa é de 22 por 100 mil); recuperando brincadeiras infantis e ocupando as ruas e praças com teatro, dança e música. Lá na Guatemala eles não contam uma política pública como o Cultura Viva e obtém recursos financeiros através de acordos de colaboração internacional; mas querem que o estado assuma sua responsabilidade reconhecendo a Cultura como um direito humano inalienável. Em agosto deste ano participei de uma Comparsa (passeata festiva) nas ruas da cidade de Guatemala, a capital; estávamos em mais de 500 manifestantes, gente em perna de pau (lá descobri que a perna de pau era usada pelos Mayas há milênios), com roupas diferentes, máscaras, e muito sorriso no rosto. O que q o queriam e querem? Pontos de Cultura como base e a Cultura Viva como alavanca para o desenvolvimento sustentável.

Em outro extremo da América, a Argentina, nova manifestação (foi em novembro de 2010, se bem me recordo): El Pueblo Hace Cultura! Igualmente, mais de 500 pessoas nas ruas. Grupos de Teatro do Oprimido se apresentando “en las calles” (com sotaque bem portenho, em que dois eles formam gê). As avenidas largas de Buenos Aires foram palco de uma linda manifestação com tambores e caminhões artísticos do Calderon Timbal (outro Pontão de Cultura que preenche a periferia da grande Buenos Aires com arte). Juntos, saímos do Congresso Nacional e fomos até a Casa Rosada (palácio presidencial), concentrando-nos na histórica Plaza de Mayo e provando que Crear vale la pena! (mais um Ponto de Cultura). E para lavar a festa, uma chuva de verão, com direito a sol e arco-íris. Na Argentina já há edital do governo para seleção de Pontos de Cultura e projeto de lei no Congresso.

Mais ao norte, no Peru, novas manifestações pela Cultura Viva por una Nueva Lima! O governo da capital do Peru já está implantando o programa como estratégia para o desenvolvimento local, e o ministério da cultura, após a vitória do presidente Ollanta Humalla, definiu os Pontos de Cultura como prioridade; há até um slogan no site do ministério: “Punto de Cultura, la identidad en la diversidad!” Tudo começou com uma moça peruana que esteve presente na Teia de Fortaleza e que leva o nome de pomba: Paloma; mas hoje já são tantas as pessoas engajadas nas terras Incas que nem é possível conta-las. Tudo em tão pouco tempo e já voam como a Cultura Viva que se espalha pelo mundo.

Atravessando os Andes, e regressando à América Central: Costa Rica. Pura Vida! É assim que eles definem a vida por lá, Pura Vida, um país de gente corajosa, que há 60 anos decidiu viver sem forças armadas e priorizar o investimento em cultura e educação. Um pais pequeno, com um povo feliz e educado; eles se autodefinem como “Ticos”, isso porque tem o hábito de se referir a tudo no diminutivo. O ministro da cultura é um músico entre o erudito, o tradicional e o jazz e há anos sai recolhendo ritmos e sons da cultura popular da América Central, depois compõe em coisas novas com a orquestra da Papaya, pura mistura, como a realizada a partir dos prêmios do Interações Estéticas do Cultura Viva. Há redes de cultura no interior do país, na montanha, no litoral, entre vulcões, na capital; surpreendam-se! em San Jose (a capital, com 1.500.000 habitantes) há 20 teatros com programação regular, de quarta a domingo. Todos querem ser Ponto de Cultura; ou melhor: PunTICOS de Cultura!

Mais ao norte: México. Um país continente como o Brasil. A terra das cores vibrantes, das mil culturas, das pirâmides e da sabedoria ancestral ameríndia. O Ponto de encontro foi a Cidade do México, enorme, e para lá foi gente de todo país. Na divisa com os Estados Unidos, uma cidade assolada pelos cartéis do trafico de drogas e a super exploração da mão de obra em fabricas maquiadoras de produtos importados, Ciudad Juarez, combate o genocídio de mulheres com biblioteca comunitária e ações de leitura e gênero; mais um Ponto de Cultura que já é. Há outros, na periferia da capital, nos estados de Oxaca, Chiapas, falando em espanhol ou em idiomas indígenas. Além de um enorme interesse das universidades mexicanas por toda a experiência brasileira; na faculdade de economia da UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México) a conferencia foi “Economia Viva e Economia Criativa?”, na IberoAmericana, sobre Cultura Digital e na Universidade do Distrito Federal, sobre Cultura e Direitos Humanos. Pura troca em que fui acompanhado por um Ponto de Cultura do Brasil, o Vídeo nas Aldeias.

Unindo as partes desta América diversa e ensolarada, a Colômbia. Uma surpresa! Eu próprio, acostumado a combater estereótipos e preconceitos, me surpreendi com aquele país. Um povo tão gentil e amável. Como podem viver em meio a tanta violência? Narcotraficantes, contras, guerrilheiros. Como pode? Em sua cultura ancestral, vi uma das mais delicadas metalurgias, só trabalhos em ouro, com imagens de flores, pássaros, macacos, nenhuma arma, nenhuma cena de violência. Enquanto visitava esta bela ourivesaria no Museu do Ouro de Bogotá, comparava com a cultura grega, romana ou dos demais povos europeus ou asiáticos e lembrava das imagens de guerra e destruição, das armas e batalhas aterradoras. Com a arte dos primeiros habitantes do El Dorado (os conquistadores espanhóis supunham que a cidade de ouro estava no território da atual Colômbia) só vi beleza e paz. Para eles, os Pontos de Cultura tem um significado: desesconder a Colômbia ancestral e religar o presente com a paz. Em Bogotá, há toda uma articulação da prefeitura municipal pela Cultura Viva; em Cali, mais de cem grupos a defender a defender os conceitos da Cultura Viva (autonomia, protagonismo e empoderamento social) e em Medellin, um dos mais instigantes laboratórios de tecnologias sociais no mundo. Uma cidade que se reinventa pela Cultura (5% do orçamento público vai para a pasta da Cultura), que faz lindas bibliotecas em meio a favelas, que estabelece um compromisso cidadão e trata bem ao seu povo; assim estão superando as marcas do narcotráfico e das desigualdades. Mas faltava um ponto a aproximar ainda mais governo e povo, um ponto de potência que só se encontra nas comunidades ativas. Quem fez este ponto e alavanca, foi um Ponto de Cultura que já é, Nuestra Gente, uma casa comunitária em meio à favela, com Jorge Blandon e tantos amigos gentis.

Nuestros hermanos, em todos os países, gente comum a todas as outras que conheci em cada viagem pelo interior do Brasil e agora por nuestra América.

 

Célio Turino – Historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Foi idealizador e gestor do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura, tendo exercido diversas funções públicas, entre elas: Secretário de Cultura e Turismo em Campinas/SP (1990/92), Diretor de Esporte e Lazer em São Paulo/SP (2001/2004) e Secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/2010). Autor dos livros: “Na Trilha de Macunaíma – ócio e trabalho na cidade (Ed. SENAC, 2005) e PONTO de CULTURA – o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi, 2009), entre outros.

 

 

2 comentários sobre “CULTURA VIVA na América Latina

  1. Que maravlha Célio! Seu trabalho ganhou força além da fronteira e temos esperança ainda de vê-lo retomado aqui, no nosso paí. Que os meninos e meninas do Brasil, como os de Araçuaí como exemplo do valor da nossa cultura, possam de novo espalhar suas vozesem pelo imenso território, aqui e ali, como um eco no vento. Você, nem precisa se aborrecer, pois a idéia foi ampliada. Aguardemos pois.
  2. É com muita alegria que li esse texto narrativo das andanças desse homem que sonha, pensa e realiza ações culturais generosas, modernas e transformadoras para o Brasil e, consequentemente, para o mundo.
    Tudo está conectado: ação e reação, simples assim.
    O que sempre me chamou a atenção no ser humano Célio Turino é que ele descarta a primeira pessoa logo de início em seu texto, descrevendo e salientando a real importância daqueles quem fazem Cultura (com C maiúsculo mesmo)e que vêem, através dela, a transformação de suas vidas e de suas comunidades. Lembro de quando o conheci, no início dos anos ´90, um Célio Turino jovem produtor cultural e depois secretário de Cultura de Campinas. Foi lá, naquele período, que nasceram as Casas de Cultura. O proto Programa Cultura Viva/Ponto de Cultura estava lá, semente plantada com horizontalidade e diálogo. Com muitas dificuldades, mas estava lá essa semente, cheia de nutrientes que culminariam em sua estadia no governo federal, a convite do ex- ministro Gilberto Gil. Já fazia diferença um secretário de cultura que andava nas ruas com os artistas, estava presente nas periferias da cidade, recebia as pessoas de portas abertas na prefeitura. Mais uma vez a simplicidade de pensar e gestar processos inovadores (nem por isso menos árduos de se implantar)trouxeram para o Célio essa possibilidade e experiência de ver, sentir e tocar as pessoas que estavam “escondidas” em sua cidade e depois, já no governo,nesse Brasil.Fazer de suas vidas culturais um vetor de mudanças na dura realidade excludente brasileira era e é uma obstinação e “sina” desse articulador nato. Lendo esse relato apaixonante da semeadura que ele tem feito pelo mundo, de forma simples, abnegada, de eterna escuta das raízes culturais de cada povoado, cada região visitada, trás um fôlego novo para arejar o entendimento na difícil e atropelada continuidade nesse processo do Cultura Viva aqui no Brasil.
    Processo esse que ganha força pelo mundo exatamente por termos seu articulador longe das amarras da burocracia governamental. O relato da construção de uma rede de pessoas que fazem da Cultura ser um ente intocável/tocável, vivo e dinâmico, em transmutação, porém presente, incondicionalmente presente, em cada ser humano desse planeta, é ver nesse historiador, escritor, pensador de um Brasil possível e sustentável, o ser humano que ultrapassa o condicionamento impostos pela mesa, cadeira e paredes dos gabinetes, das decisões tomadas de cima para baixo, sem a real vivência dos fatos culturais que se sucedem diariamente. O fazer cultural de um gestor/pensador só acontece quando se vive o dia a dia nas ruas, nas praças, nos vilarejos, nas favelas ou mesmo no suposto conforto das grandes cidades. Esse é o ponto de encaixe que faz de Célio Turino hoje, no meu entender, a pessoa mais apita a falar de Cultura como sustentabilidade real para vida das pessoas atualmente no Brasil.
    O reconhecimento desse trabalho, por parte da comunidade cultural na América Latina e em tantos outros países, construtor de uma nova política cultural, às avessas da massificação superficial contida na “indústria cultural” mundial, é a tradução de que a Cultura que se baseia na gestão compartilhada, horizontal e na generosidade entre os fazedores culturais, poder público e população, pode ser o caminho para vencer essa globalização meramente financeira e indiferente atual. A busca por uma sociedade mais fraterna, equilibrada e sustentável tem na pessoa de Célio Turino (e ainda bem que ele está aqui, é um brasileiro que pensa o Brasil) um incansável pensador e defensor da cultura nacional. Seria uma combinação perfeita se a classe artística cultural do país e nosso governo reconhecesse essa dádiva ainda enquanto ele tem muito a oferecer e doar para todos.

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